Teologia
O jeito anglicano de fazer teologia
Existe uma teologia caracteristicamente anglicana?
A resposta dos anglicanos, em geral, é negativa. Então, não há produção teológica no anglicanismo? Carecem aqui alguns comentários. Quando os teólogos anglicanos afirmam que não há uma teologia anglicana, eles querem dizer com isso que não há um sistema de teologia especificamente anglicano. Em outras palavras, não existe um conteúdo sistematizado de teologia especificamente anglicano.
O quadrilátero de Chicago-Lambeth, de 1888, define quatro princípios básicos que permeiam as igrejas da Comunhão Anglicana: As Escrituras Sagradas do Primeiro e do Segundo Testamentos, "contendo tudo o que é necessário para a salvação", e regra e padrão de fé. Os Credos: dos Apóstolos, como símbolo batismal e o Credo Niceno, como a declaração suficiente da fé cristã. Os dois Sacramentos ordenados por Cristo: Batismo e Ceia do Senhor – ministrados com o uso infalível das palavras de Cristo, e dos elementos ordenados por Ele. Há outros Sacramentos, não ordenados diretamente por Jesus, mas reconhecidos pela Igreja como tendo caráter sacramental. São eles: a Confirmação, a Penitência, as Ordens Ministeriais, o Matrimônio e a Unção dos Enfermos. O Episcopado Histórico, adaptado localmente nos métodos de administração às necessidades variadas das nações e povos chamados por Deus para unidade de Sua Igreja.
Assim, as Igrejas Anglicanas têm em comum com outras Igrejas históricas as Escrituras, os Credos e os sacramentos. É quase habitual, também, dizermos que, na Comunhão Anglicana, não existe uma Confissão como a de Augsburgo ou outras similares. De fato, não existe. E o que existe é o Livro de Oração Comum, que empregamos nas nossas diversas celebrações. Aí estão os fundamentais.
A qualificação “anglicana” da teologia não está em seu conteúdo, mas em seu método. O que se pretende ser anglicano está no modo como as Igrejas da Comunhão Anglicana entendem por Evangelho e seu ensino apostólico, como elas adoram o Deus manifesto e conhecido em Jesus Cristo pelo poder do Espírito Santo no Evangelho e nas Escrituras, como elas organizam a vida da Igreja como a Igreja apostólica e como elas entendem a relação entre a Igreja com o passado e entre a Igreja e a sociedade no dado momento. Em tudo isso estão envolvidos as Escrituras, Credos, doutrinas, tradição (memória, experiência da vivência da Igreja pelos séculos (liturgia, sacramentos, pastoral, política).
O método anglicano
O método anglicano, por assim dizer, desenvolveu-se, no século XVI e XVII, pelo desejo da Igreja da Inglaterra de levar em consideração a continuidade com o seu passado, principalmente, com a Igreja Primitiva e da inclusão das percepções e experiências da Reforma em meio às pressões políticas, religiosas e culturais que a nação e a Igreja sofriam. Em poucas palavras, era uma forma de teologia contextual, “via média”, com apelo relativo à antiguidade, isto é, à Igreja Primitiva.
Nos séculos XVI e XVII a via media significou o caminho entre Roma 9Católicos Romanos) e Genebra ( Protestantes). Porém essa via média como método não se limitou apenas às duas posições eclesiais, e implicou mais na inclusividade, distinguindo o essencial e o secundário. E isso ajudou os teólogos anglicanos a enfrentar e aceitar os desafios da crítica bíblica posteriormente, por exemplo.
Cenário histórico
No fim da Idade Média, havia deficiências na Igreja inglesa e europeia em geral: nível inadequado de educação cristã do laicato, e nível baixo do conhecimento do clero e insatisfação geral com o mínimo de conformidade, de participação mecânica na liturgia e na vida sacramental e ausência de ênfase em temas centrais. O movimento dos lolardos era forte entre pessoas humildes, baseado em Wycliff. Já Tomas More, John Colet (Deão da Catedral de São Paulo) e Erasmo tiveram influência na esfera universitária. Erasmo, a convite de Henrique VIII, veio preparar o texto grego do Novo Testamento.
Na Inglaterra, o Parlamento patrocinava a causa da monarquia contra a elite eclesiástica atrelada ao domínio papal Isto distinguia a Inglaterra de outros países europeus.
A imprensa facilitou a divulgação das obras de Lutero e elas vieram à Inglaterra. Também vieram obras de outros centros como Zurique e Basileia. Com certa perplexidade foram lidas, nas universidades, pelos clérigos e intelectuais, as obras que atacavam a autoridade eclesiástica vigente. As reações iniciais das autoridades eram negativas. A obra anti-Lutero Assertio Septum Sacramentorum (1525) que portava o nome de Henrique VIII granjeou o título de Defensor da Fé conferido por Leão X. A questão do divórcio de Henrique com a Catarina de Aragão, contudo, era um problema político para o rei, porque não tinham um herdeiro e ela já estava com seus 40 anos de idade. Para o Papa Clemente VII a anulação do casamento era, também, um problema político. Pois Catarina de Aragão era a tia do Carlos V, em cujas mãos estava o papado.
Para desatrelar-se do Papa, o rei recorreu de um ato instaurado no século XIV. Esse ato se denominava de Praemunire e proibia ou restringia o apelo ao tribunal papal e o envio das ofertas ao papado. Consta que um monge expressou o sentimento do povo desta maneira: “Senhor Jesus, retire de nosso meio o poder papal ou diminua o poder que ele acredita ter sobre o nosso povo!”
Oficialmente, a Igreja permaneceu católica medieval. O rei era contrário à Reforma. Por outro lado, havia estudos da Reforma luterana e calvinista. As universidades eram centros de estudos da Reforma e do novo conhecimento introduzido pelos renascentistas. Durante esse século e o século seguinte, a Igreja Anglicana pendeu entre esses dois polos os artigos e livros
Durante o governo de Henrique VIII, a Igreja pendeu mais para o lado católico. Os Dez Artigos, por exemplo, versavam sobre os Credos, os Sacramentos, a Presença Real na Eucaristia, a invocação dos santos e o uso de imagens (ambos com uma aprovação comedida). O “Livro dos Bispos” foi elaborado tendo como objetivo ajudar os clérigos a pregar de acordo com a nova situação eclesial, isto é, com o princípio da Reforma. Baseado nos Dez Artigos, o Livro procurava expor a doutrina e a moral. Por isso, havia explicações sobre os Credos, os Sete Sacramentos, o Pai Nosso, a Ave Maria, a Justificação e o Purgatório.
Após a ascensão do Rei Eduardo VI ao trono (1547), houve rápidas reformas, porém não houve nenhuma declaração sobre a posição doutrinária da Igreja. Dá-se o retorno do uso da Bíblia no vernáculo e na maioria dos ofícios religiosos. Dois Livros de Oração Comum são publicados: um em 1549 e outro em 1552.
Em 1553 houve a publicação de Quarenta e Dois Artigos. Estes tiveram pouca duração, porque, no mesmo ano, a rainha Maria os revogou. Porém, os 42 Artigos representaram uma nova linha de pensamento teológico, retomando, em parte, os treze artigos sobre os quais havia concordância entre anglicanos e luteranos. Sua publicação visava a criticar duas posições adversárias: o catolicismo medieval e os anabatistas.
Com a ascensão ao trono de Isabel (em inglês Elizabeth) I, após o conturbado reinado de Maria, a católica, houve o objetivo principal assegurar a unidade da nação diante das adversidades externas. Ela concentrou-se não na doutrina, mas na disciplina da adoração. Por isso, a posição do Livro de Oração Comum na Inglaterra foi reforçada.
Os 42 Artigos foram retomados e revisados, levando a 39 Artigos de influência mais luterana do que calvinista no que se refere à Reforma. Os extremados calvinistas formaram o que veio chamar de “puritanos”. Opuseram-se ao Livro de Oração Comum. Em poucas palavras, eles desejavam destruir tudo que se desenvolveu na Igreja Ocidental e Oriental e retornar às Escrituras e construir uma nova Igreja. A continuidade foi questionada. Eles se opuseram à Liturgia da Eucaristia (considerada mais um formalismo e uma Missa romana), às expressões externas (por exemplo: sinal da cruz no Batismo, a imposição das mão na Confirmação, o uso de alianças no casamento, a celebração dos santos no calendário cristão e a vênia quando se pronuncia o nome de Jesus), às antífonas na leitura dos Salmos, às vestes, às cores, aos ornamentos, ao ministério sacramental e, principalmente, ao episcopado.
De início, a Igreja da Inglaterra incluía os puritanos. Entretanto, suas divergências foram crescendo cada vez mais até o momento em que a Inglaterra cai em guerra civil. O Arcebispo de Cantuária, William Laud, tido por seus opositores como romanista e arminiano, foi executado. O Rei Carlos I é executado e uma república influenciada pelos puritanos toma o poder. O episcopado é oficialmente abolido.É somente em 1660 que se dá a restauração da monarquia – e com ela, da Igreja da Inglaterra. Um novo Livro de Oração Comum (1662) é estabelecido e a Igreja da Inglaterra retoma à calmaria. É interessante ressaltar que no século XIX, com a controvérsia gerada pelo movimento anglo-católico, o Anglicanismo toma as feições amplas que goza atualmente.
O sucesso em permitir a co-existência de indivíduos com opiniões tão diferenciadas em áreas como liturgia, sacramentos e no papel da Comunhão dos Santos (entre muitas outras coisas) tornou o Anglicanismo, de certa forma, num mini-ambiente ecumênico.
Nesse mesmo século, a formação da Comunhão Anglicana levou a uma multiplicidade de Livros de Oração Comum em diferentes línguas, províncias e dioceses; adaptados às realidades específicas. E, embora os 39 Artigos ainda sejam normativos em algumas províncias, em muitas, passaram a ter caráter histórico apenas, dando lugar ao Quadrilátero de Chicago-Lambeth como real pacto entre os anglicanos ao redor do mundo.
O Livro de Oração Comum não é um missal. É claro que ele herda muito do Missal (e do Rito) de Sarum, praticado na Inglaterra medieval. Entretanto, ele é suficientemente amplo a ponto de não amarrar uma maneira “melhor” de se fazer uma celebração. Há anglicanos que celebram uma missa solene com toda a pompa do catolicismo medieval inglês. Há anglicanos que celebram a Santa Eucaristia de maneira discreta e intimista. Há outros que batem palmas e cantam canções festivas. Mas todos ecoam as mesmas orações e dizeres do Livro de Oração Comum. Rezando em conjunto, os anglicanos aprendem que o que nos une é muito maior que o que nos separa.
Escritura-tradição-razão: o tripé de hooker
O Rev. Richard Hooker, sacerdote inglês do século XVII, tem muito a contribuir ao modo de se fazer teologia anglicano. Na sua época, havia várias controvérsias de ordem teológica, as quais ele abordou de forma criativa e conclusiva. Quanto ao papel das Escrituras Sagradas, Hooker evitou os dois extremos: a posição romana de que as Escrituras são insuficientes e que a Tradição deve suprir a insuficiência e a posição puritana de que é pecaminosa e ilegítima a liberdade da Igreja tomar decisões sobre o que as Escrituras silenciam. Hooker refletiu sobre essa e outras matérias como fizeram seus contemporâneos levando em consideração a Bíblia, a Tradição, principalmente, a Igreja Primitiva, (a interpretação contínua das Escrituras, sua aplicação), e a Razão (o bom senso, o senso comum de um povo em determinado tempo e lugar, a capacidade humana de simbolizar, ordenar, compartilhar e comunicar a experiência). Com Hooker e outros e com os Artigos houve a possibilidade de desenvolver a leitura crítica, histórica, contextual, e teologicamente trinitária e pastoral.
(Adaptado do artigo “Existe uma Teologia Caracteristicamente Anglicana?” de Sumio Takatsu e do livro “A Igreja Militante”, de N. Duval da Silva)